Já se foram quatro anos desde o meu acidente em Salt Lake City, nos Estados Unidos. No começo, perguntei-me muito sobre o que aconteceu. Questionava Deus: por que não me deixou os movimentos de uma mão, ou de um dedo sequer? Fiquei me massacrando. Mas não adiantou, não encontrei a saída, era pior, uma perda de tempo. O começo foi bem complicado, porque saí de casa aos 10 anos para viver o sonho de atleta, e já não tinha tanta convivência com meus familiares. De repente volto para Ribeirão Preto, sem movimento nenhum, necessitando de tudo e precisando de uma adaptação para mim e para toda a família. Eu sempre fui muito independente, tinha minha casa, pagava minhas contas, tinha meus relacionamentos. E de repente eu me vi de fralda, com a minha mãe, como se tivesse voltado a ser criança.
Parei de buscar explicações, e muita coisa mudou em minha vida. Meu jeito de pensar, de ver as coisas, a relação com minha família. Hoje a pior coisa que poderia me acontecer seria perder meus pais. Mil vezes pior que o meu acidente. Minha mãe é uma guerreira, demonstra uma força que não sei se eu teria. Acho que estou bem mais sensível do que na época em que andava. Quando vejo uma criança passando fome ou problemas parecidos com o meu, isso me sensibiliza muito. Todos os dias me contam histórias nas redes sociais e percebo que às vezes meu problema nem é tão grande. Mas quase não choro, acho isso ruim. Cresci na seleção de ginástica com treinadores rigorosos, sofri muito para treinar, com a canela machucada, pé quebrado, tive de aprender a lidar com isso, adquiri um lado meio “cavalo”.
Ando mais séria também, em relação a tudo, à saúde, aos problemas. Acho que estou me sentindo velha, tenho quase 30 anos! Mas tem dias em que estou como antes, brincalhona. Às vezes estou forte, às vezes estou “franga”, depende, mais paciente, mas às vezes estouro, inevitavelmente. Não sou de ficar gritando muito ou tomar decisões loucas, a não ser que já estejam na minha cabeça há muito tempo. Às vezes acordo e acho que vou me mexer normalmente. Isso frustra… Quando converso, tenho a nítida sensação de que estou gesticulando. Pode ser que em algum momento eu me surpreenda e realmente me mexa.
Preencho meu tempo com meu trabalho, faço palestras e eventos, minha principal fonte de renda. A fisioterapia constante me faz sentir atleta, porque eu sou atleta ainda. Canso do mesmo jeito, faço um esforço parecido, sinto dor muscular, aquela sensação de vitória quando consigo completar um exercício novo ou quando apresento sensibilidade em algum lugar. Depois do acidente, achei que não fosse mais me surpreender, sentir adrenalina, mas a vida me mostrou que isso ainda é possível. Tenho sensibilidade embaixo do pé, na barriga, nas costas e em alguns pontos da mão. O músculo do meu bíceps também vibra muito nos exercícios, isso é novo. Eu me sinto mais forte, mas vou devagar.
Consigo viver normalmente dentro das minhas limitações. Para ser sincera, o que mais sinto falta é de sexo. Sempre fui uma pessoa muito física, estava sempre em movimento, liberando adrenalina. Hoje não consigo fazer mais nada, é muito difícil. Aliás, minha sexualidade foi muito comentada, não chegou a me incomodar, porque a minha família, que realmente importa, já sabia. Nunca escondi nada da minha mãe. Logo contei para ela, expliquei o que eu estava sentindo e fomos nos adaptando. Quando saiu a notícia (de que tinha uma namorada), eu pensei: Caramba, quebrei o pescoço, estou quase morrendo, e as pessoas estão preocupadas se eu gosto de homem ou mulher, em pleno século XXI?
Agora moro em Ribeirão Preto, com minha mãe, num pequeno apartamento, e minha rotina começa depois das 9h30. Não gosto de acordar cedo, cuido da minha higiene, tomo banho, almoço, depois treino, vou à faculdade (de psicologia) e tento sair com minhas amigas, uma delas a Daiane dos Santos (também ginasta), com quem tenho muito contato. Nessa fase, quando vejo uma prova de ginástica, não sinto tristeza, mas saudade. Hoje olho para o acidente de uma forma mais serena - nunca voltei ao local, mas pretendo, seria legal ver neve de novo. E eu teria a chance de esquiar, sentadinha, num trenó adaptado. Espero que não tenha nenhum trauma.
Depoimento colhido por Silvio Nascimento e Luiz Castro
Foto Felipe Cotrim/VEJA.com
Foto Felipe Cotrim/VEJA.com
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