domingo, 4 de novembro de 2018

"Os Desesperados", editorial do Estadão


Os petistas prometem "construir uma frente de resistência pelas liberdades democráticas", como se o País estivesse às portas da ditadura

O Estado de S.Paulo
04 Novembro 2018 | 04h00

Uma oposição “propositiva” ao governo de Jair Bolsonaro é o que prometem alguns partidos de esquerda que já começam a se organizar com vista à próxima legislatura. Não por acaso, esse bloco excluirá o PT. Segundo explicou o deputado André Figueiredo (CE), líder do PDT na Câmara, o partido do ex-presidente e hoje presidiário Lula da Silva “tem um modus operandi próprio dele”, enquanto o bloco formado por PDT, PSB e PCdoB “tem um outro modelo de oposição”, isto é, “um modelo construtivo para o País”.
Ainda será preciso esperar que esses partidos passem das belas palavras aos atos concretos, mas é significativo que agremiações que tão fortemente antagonizaram com Bolsonaro durante a campanha agora se digam dispostas a fazer oposição responsável ao próximo governo.
Também é significativo que o grupo tenha dispensado o PT e sua linha auxiliar, o PSOL, das conversas para a formação de um bloco de oposição. O pedetista André Figueiredo explicou que não é mais possível aceitar “o hegemonismo que o PT quer impor aos demais partidos” e que nenhuma dessas legendas de esquerda aceita ser “um puxadinho do PT”.
O isolamento do PT no campo da oposição é a consequência natural do comportamento autoritário do partido, incapaz de uma convivência democrática mesmo com aqueles com os quais nutre alguma afinidade ideológica. Para os petistas, nada que não tenha sido ditado pelo PT tem legitimidade.
À medida que foi sendo desossado pelas urnas e pela Justiça, o partido de Lula da Silva recrudesceu seu autoritarismo, expondo cada vez mais seu desespero. Depois de passar a campanha inteira a denunciar como “golpe” o impeachment constitucional de Dilma Rousseff, a exigir a libertação de Lula, como se este não tivesse que cumprir pena pelos crimes que cometeu, e a exigir apoio a seu candidato como única forma de “salvar a democracia” ante o perigo do “fascismo” supostamente representado pela candidatura de Bolsonaro, o PT agora trata de dizer que a vitória do oponente resultou de um processo “eivado de vícios e fraudes”, conforme declarou a presidente do partido, Gleisi Hoffmann.
Os petistas, assim, fazem exatamente aquilo que deles se esperava – isto é, em vez de aceitar o resultado das urnas e se organizar para fazer oposição decente e leal ao futuro governo, preferem deflagrar campanha para deslegitimar a vitória de Bolsonaro. Do alto de sua prepotência, os petistas dizem que Bolsonaro foi eleito depois de “uma campanha de ódio e de mentiras, que nos últimos anos manipulou o desespero e a insegurança da população”, como diz uma resolução da Executiva Nacional do PT aprovada logo após a eleição. Ou seja, para o PT, se não houvesse “manipulação” e “mentiras” o candidato petista seria eleito com folga.
Um partido que em documento oficial chama um presidente democraticamente eleito de “aventureiro fascista”, como faz o PT, não tem a menor intenção de fazer oposição. Para esta atitude verdadeiramente golpista já chamávamos a atenção no editorial Desespero, de 19 de outubro. Sua intenção é inviabilizar o governo e, por tabela, impedir que o País saia da crise que os próprios petistas criaram em sua desastrosa passagem pela Presidência. Os desesperados petistas prometem “construir uma frente de resistência pelas liberdades democráticas”, como se o País estivesse às portas da ditadura, e essa “resistência” se estende a tudo o que interessa à maioria da população, a começar pela reforma da Previdência.
Enquanto isso, os grupelhos a serviço do lulopetismo mostram do que é feita a “democracia” que defendem: uma manifestação convocada pelo notório Guilherme Boulos para exigir que Bolsonaro “respeite a oposição” e “as liberdades democráticas” acabou em tumulto e depredação na terça-feira passada em São Paulo.
Não surpreende, assim, que a tal “frente de oposição” que o PT pretende liderar não tenha apoio. O grave momento do País exige um esforço de todos para a superação da crise, o que implica a existência de uma oposição dura, porém prudente. Os sabotadores – aqueles que não se importam com o interesse público – devem ser isolados, para que fique patente de vez sua profunda irresponsabilidade.
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,os-desesperados,70002583377

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

"Bolsonaro, o 'mito', derrotou a 'ideia' Lula", por José Nêumanne

Os quase 60 milhões de eleitores que votaram no capitão só queriam se livrar do ladrão
JOSÉ NÊUMANNE, O Estado de S.Paulo
31 Outubro 2018 | 03h00

Nêumanne
Desde 2013 que o demos (povo, em grego) bate à porta da kratia (governo), tentando fazer valer o preceito constitucional segundo o qual “todo poder emana do povo” (artigo 1.º, parágrafo único), mas só dá com madeira na cara. Então, em manifestações gigantescas na rua, a classe média exigiu ser ouvida e o poste de Lula, de plantão no palácio, fez de conta que a atendia com falsos “pactos” com que ganhou tempo. No ano seguinte, na eleição, ao custo de R$ 800 milhões (apud Palocci), grande parte dessa dinheirama em propinas, ela recorreu a um marketing rasteiro para manter a força.
Na dicotomia da época, o PSDB, que tivera dois mandatos, viu o PT chegar ao quarto, mas numa eleição que foi apertada, em que o derrotado obtivera 50 milhões de votos. Seu líder, então incontestado, Aécio Neves, não repetiu o vexame dos correligionários derrotados antes – Serra, Alckmin e novamente Serra – e voltou ao Senado como alternativa confiável aos desgovernos petistas. Mas jogou-a literalmente no lixo, dedicando-se à vadiagem no cumprimento do que lhe restava do mandato. O neto do fundador da Nova República, Tancredo Neves, deixou de ser a esperança de opção viável aos desmandos do PT de Lula e passou a figurar na galeria do opróbrio ao ser pilhado numa delação premiada de corruptores, acusado de se vender para fazer o papel de oposição de fancaria. O impeachment interrompeu a desatinada gestão de Dilma, substituída pelo vice escolhido pelo demiurgo de Garanhuns, Temer, do MDB, que assumiu e impediu o salto no abismo, ficando, porém, atolado na própria lama.
Foi aí que o demos resolveu exercer a kratia e, donas do poder, as organizações partidárias apelaram para a força que tinham. Garantidas pelo veto à candidatura avulsa, substituídas as propinas privadas pelo suado dinheiro público contado em bilhões do fundo eleitoral, no controle do horário político obrigatório e impunes por mercê do Judiciário de compadritos, elas obstruíram o acesso do povo ao palácio.
Em janeiro, de volta pra casa outra vez, o cidadão sem mandato sonhou com o “não reeleja ninguém” para entrar nos aposentos de rei pelas urnas. Chefões partidários embolsaram bilhões, apostaram no velho voto de cabresto do neocoronelismo e pactuaram pela impunidade geral para se blindarem. Mas, ocupados em só enxergar seus umbigos, deixaram que o PSL, partido de um deputado só, registrasse a candidatura do capitão Jair Bolsonaro para conduzir a massa contra a autossuficiência de Lula, ladrão conforme processo julgado em segunda instância com pena de 12 anos e 1 mês a cumprir. O oficial, esfaqueado e expulso da campanha, teve 10 milhões de votos a mais do que o preboste do preso.
Na cela “de estado-maior” da Polícia Federal em Curitiba, limitado à visão da própria cara hirsuta, este exerceu o culto à personalidade com requintes sadomasoquistas e desprezo pela sorte e dignidade de seus devotos fiéis. Desafiou a Lei da Ficha Limpa, iniciativa popular que ele sancionara, transformou um ex-prefeito da maior cidade do País em capacho, porta-voz, pau-mandado, preposto, poste e, por fim, portador da própria identidade, codinome, como Estela foi de Dilma na guerra suja contra a ditadura. Essa empáfia escravizou a esquerda Rouanet ao absurdo de insultar 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros que haviam decidido livrar-se dele de nazistas, súditos do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que não se perca pelo nome, da Alemanha de Weimar: a ignorância apregoada pela arrogância.
Com R$ 1,2 milhão, 800 vezes menos do que Palocci disse que Dilma gastara há quatro anos, oito segundos da exposição obrigatória contra 6 minutos e 3 segundos de Alckmin na TV, carregando as fezes na bolsa de colostomia e se ausentando dos debates, Bolsonaro fez da megalomania de Lula sua força, em redes sociais em que falou o que o povo exigia ouvir.
A apoteose triunfal do “mito” que derrotou a “ideia” produziu efeitos colaterais. Inspirou a renovação de 52% da Câmara; elegeu governadores nos três maiores colégios eleitorais; anulou a rasura na Constituição com que Lewandowski, Calheiros e Kátia permitiram a Dilma disputar e perder a eleição; e forçou o intervalo na carreira longeva de coveiros da república podre.
O nostálgico da ditadura, que votou na Vila Militar, tem missões espinhosas a cumprir: debelar a violência, coibir o furto em repartições públicas e estatais, estancar a sangria do erário em privilégios da casta de políticos e marajás e seguir os exemplos impressos nos livros postos na mesa para figurarem no primeiro pronunciamento público após a vitória, por live. Ali repousavam a Constituição e um livro de Churchill, o maior estadista do século 20.

Não lhe será fácil cumprir as promessas de reformas, liberdade e democracia, citadas na manchete do Estado anteontem. Vai enfrentar a oposição irresponsável, impatriótica e egocêntrica do presidiário mais famoso do Brasil, que perdurará até cem anos depois de sua morte. E não poderá fazê-lo com truculência nem terá boa inspiração nos ditadores que ornam a parede do gabinete que ocupou. Sobre Jânio e Collor, dois antecessores que prometeram à cidadania varrer a corrupção e acabar com os marajás, tem a vantagem de aprender com os erros que levaram o primeiro à renúncia e o outro ao impeachment.
Talvez o ajude recorrer a boas cabeças da economia que trabalharam para candidatos rivais, como os autores do Plano Real e a equipe do governo Temer, para travarem o bom combate ocupando o “posto Ipiranga” sob a batuta de Paulo Guedes. Poderá ainda atender à cidadania se nomear bons ministros para o Supremo Tribunal Federal e levar o Congresso a promover uma reforma política que ponha fim a Fundo Partidário, horário obrigatório e outros entulhos da ditadura dos partidos, de que o povo também quer se livrar em favor da desejável igualdade.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

"Um voto impossível", por Carlos Alberto Sardenberg


Lulistas e bolsonaristas falam de duas imagens falsas. Mídia não pode ser ao mesmo tempo elitista e comunista
Vamos falar francamente: eleger Fernando Haddad é absolver Lula e condenar a Lava-Jato; eleger Bolsonaro é absolver o capitão da direita radical e populista e condenar a tolerância política e moral.
Um candidato é a soma do que fala, do que falou e de seu comportamento pessoal e político. Mas é também a imagem que os seguidores fazem de seu líder.
No caso do PT, claro, o líder é Lula, e não Haddad. Sua vitória seria a revanche não apenas contra os promotores e juízes da Lava-Jato, mas contra uma operação legal e institucional que flagrou o maior escândalo corporativo do mundo. Não é exagero. Não se encontra por aí um modelo de corrupção tão organizado, envolvendo praticamente todos os órgãos do governo.
Com Haddad/Lula eleito, tudo isso seria um não acontecimento ou, como dizem, uma invenção das elites reunidas no Judiciário, na mídia, nas empresas e nos bancos — tudo para massacrar os pobres.
No caso de Bolsonaro, sua vitória, como dizem o candidato e seus seguidores, seria o triunfo sobre os canalhas, que é como se referem aos adversários. E sobre uma grande conspiração.
Bolsonaro e seus seguidores veem em toda parte uma armação de comunistas, ateus, infiéis, amigos dos bandidos e corrompidos moralmente, todos contra o homem comum. Desconfiam da urna eletrônica, das pesquisas eleitorais, da mídia. Gostam das Forças Armadas e das polícias, mas desconfiam da Polícia Federal se esta não demonstrar que o atentado contra Bolsonaro também foi parte de uma grande conspiração.
Não é por acaso que os dois extremos — lulistas e bolsonaristas — têm um mesmo alvo. Para os petistas, a mídia é golpista e dominada pelas elites reacionárias. Para os bolsonaristas, é dominada por uma esquerda imoral.
É claro que não podem estar falando da mesma coisa. Estão falando da imagem que cada lado tem da imprensa, formando-se duas imagens necessariamente falsas. A mesma mídia não pode ser ao mesmo tempo elitista e comunista.
Vai daí que a opinião dos outros não tem a menor importância para esses dois extremos. Muito menos a prática democrática da controvérsia e da diversidade.
A esta altura, perguntarão os leitores: mas os eleitores de Bolsonaro e Lula/Haddad são todos assim?
Há muitos que são. Sim, há extremistas e intolerantes entre nós. Mas isso não explica tudo.
No lado do PT, muitos eleitores votam pela lembrança de bons anos do governo Lula. De fato, emprego, salários e crédito cresceram de modo expressivo. Não foi uma obra do lulismo, mas uma combinação clássica de estabilidade econômica (neoliberal!) e uma onda externa favorável. Todos os países emergentes se deram bem — e até melhor que o Brasil. Nenhum emergente, por exemplo, passou pela dura recessão gestada aqui pelos governos Lula e Dilma. O lulismo, ao final, entregou desemprego.
Nesse aspecto, o impeachment de Dilma foi até uma sorte. Livrou Lula do peso do governo, permitiu que sua intensa propaganda passasse para a oposição e convencesse muita gente de que foi tudo culpa dos golpistas. Mentir foi a tática. Como essa agora de dizer que a ONU considerou legítima a candidatura de Lula, quando há apenas um parecer dado por dois membros (alinhados à esquerda) de um comitê acessório formado por não diplomatas.
Mais uma vez, o lulismo contou com a incompetência e as hesitações do centro político e liberal.
No lado de Bolsonaro, muitos eleitores simplesmente estão fartos do governo, do excesso de impostos e da falta de serviços públicos, dos políticos corruptos eternamente no poder e, sim, da imposição do chamado politicamente correto. Reparem: muitos eleitores dessa direita são liberais no sentido de achar que cada um se comporta como quer. Mas não apreciam quando a agenda progressista é imposta por meio de leis e obrigações.
Também aqui, o centro liberal — nos costumes e na política — não soube contar e colocar sua história.
E assim chegamos a uma eleição em que uma agenda é tirar Lula da cadeia e anular a Lava-Jato. A outra é prender Lula e todos os demais canalhas.
https://oglobo.globo.com/opiniao/um-voto-impossivel-23104963

quinta-feira, 12 de julho de 2018

"A malandragem ridícula de Favreto", por Helio Gurovitz

A decisão do juiz que mandou soltar Lula não tem lógica jurídica – só eleitoral

Por Helio Gurovitz
09/07/2018

Hélio Gurovitz
Quando três parlamentares petistas entraram com o pedido para tirar da cadeia o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última sexta-feira, 32 minutos depois do início do plantão do juiz Rogério Favreto no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), o Brasil já estava fora da Copa do Mundo. A batalha de decisões de ontem despertou mais emoções que uma partida da seleção.

Favreto foi filiado ao PT entre 1991 e 2010, indicado desembargador no TRF-4 pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2011 – sem jamais ter sido juiz, entrou como representante da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) numa vaga preenchida pela regra do quinto constitucional – e único dos 14 juízes da corte a votar por abrir processo disciplinar contra Sérgio Moro em 2016, em virtude da divulgação de conversas entre Lula e Dilma.

Emitiu ontem três decisões mandando libertar Lula, a primeira (de 13 páginas) menos de 38 horas depois do pedido dos petistas Wadih Damous, Paulo Teixeira e Paulo Pimenta. A segunda, depois que Moro, citado por Favreto, solicitou à Polícia Federal (PF) que aguardasse uma decisão do relator do processo, o desembargador João Pedro Gebran Neto. A terceira, depois de contestado por Gebran, dando à PF uma hora para soltar Lula. Só sossegou no início da noite, quando o presidente do TRF-4 retirou o processo do plantão e mandou devolvê-lo a Gebran.

O argumento que Favreto usou para mandar soltar Lula é tão-somente ridículo. Basicamente, disse que Lula, como pré-candidato à Presidência pelo PT, tem direito a estar livre para fazer campanha. Isso mesmo. “Esse direito a pré-candidato à Presidência implica necessariamente na (sic) liberdade de ir e vir pelo Brasil ou onde a democracia reivindicar”, escreveu. Pouco importa, para Favreto, que a Lei da Ficha Limpa proíba explicitamente a candidatura de condenados em segunda instância.

Pela lógica de Favreto, quem cumpre pena por condenação criminal e recorre de decisão da segunda instância tem agora uma estrategia infalível para sair da cadeia. Basta candidatar-se a algum cargo e argumentar que a democracia “reivindica” sua presença pelo Brasil todo. Precisa, portanto, ser solto. Deu pra entender?

Até o final de junho, de acordo com um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, Lula havia entrado com nada menos que 78 recursos no processo em que foi condenado como proprietário oculto do apartamento no Guarujá, reformado segundo suas especificações pela empreiteira OAS. Perdeu todos aqueles que foram julgados: na vara de Moro, no TRF-4, no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF). Não existe, portanto, discussão jurídica alguma sobre a condenação de Lula nem sobre sua prisão.

O que existe – e isso fica claríssimo pela própria argumentação usada na decisão de Favreto – é uma campanha política. A esta altura, o PT tem perfeita noção de que a lei impedirá a candidatura Lula. Mas precisa dela viva se quiser ter alguma chance de retomar o poder. As pesquisas que incluem o nome de Lula o põem na frente dos demais candidatos. Qualquer indicado por ele – como o ex-governador baiano Jaques Wagner ou o ex-prefeito paulistano Fernando Haddad – seria competitivo.

A demora em tomar uma decisão por outra candidatura faz sentido para sustentar a narrativa de que Lula é uma vítima de uma conspiração entre Justiça, Ministério Público, polícia, imprensa, bancos, empresários e de tudo aquilo que se possa abrigar sob o termo genérico “elites” – e não um criminoso comum que se aproveitou do cargo de presidente em benefício próprio, recebendo benesses pagas com o dinheiro desviado da Petrobras por diretores indicados com sua bênção.

Mas o preço da demora petista em definir uma candidatura alternativa tem sido o crescimento de candidatos de outros partidos, em especial o ex-governador cearense Ciro Gomes. O pior cenário para o PT será entrar de coadjuvante no barco de Ciro quando a campanha já estiver avançada. Implicará uma perda de poder substancial para um partido que detém um nome de apelo popular como Lula.

É isso o que explica o futebol jurídico de ontem. A partir de hoje, petistas poderão dizer que a PF descumpriu a ordem de um desembargador e manter viva sua fantasia de que Lula é vítima da tal conspiração. O objetivo deles será transformar a campanha não num debate produtivo sobre o Brasil – mas numa discussão jurídica irrelevante sobre a prisão de Lula e seu direito a ser candidato. Enquanto for possível manter a ilusão, acreditam poder conter o crescimento de Ciro e outros adversários.

Para manter o nome de Lula na pauta, vale tudo: chuva de habeas corpus no Supremo (até que caiam com um ministro "simpático" ou sejam julgados na Segunda Turma), recursos de toda sorte ao STJ, argumentos em profusão contra Moro e os demais juízes que condenaram Lula, campanha da militância e de intelectuais engajados em livros, filmes e nas páginas da imprensa – e até aproveitar as poucas horas em que um juiz simpático ao PT está de plantão no TRF-4, malandragem equivalente a tentar pôr a bola com a mão pra dentro da rede, na esperança de que nenhum juiz de vídeo vá prestar atenção. Vai que cola.
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https://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/2018/07/09/a-malandragem-ridicula-de-favreto.ghtml

quinta-feira, 26 de abril de 2018

"Aécio e o luto da esquerda", por Flávio Rangel


Ninguém acha que Aécio é uma ideia

Quando despontou na política, secretário particular de seu avô, Aécio Neves era o retrato perfeito do político jovem e moderno. Claramente destinado a uma carreira brilhante, não foi surpresa quando, sucessivamente, se fez deputado federal, presidente da Câmara, governador de estado, senador da República — e, quase, presidente da República.
Mas era tudo aparência. Não era jovem, era moleque. Parecia moderno, era modernoso. Não encarnava o novo, mas o novidadeiro. Não era inteligente, era calculista. Não tinha ambição, tinha ganância. Não era interessado, e, sim, interesseiro. Parecia altivo, era vaidoso.
À fortuna da família, preferiu as gorjetas dos arrivistas, e trocou a estirpe de Tancredo Neves pela laia de Joesley Batista. Herdeiro da melhor tradição, escolheu ser representante do que há de mais atrasado. Desonrou a si mesmo, ao sobrenome e ao país.
Como o Dorian Gray de Oscar Wilde, Aécio manteve a aparência jovem e impoluta durante anos, enquanto seu caráter, oculto pela hipocrisia, apodrecia em silêncio. Como Gray, assassinou-se a si mesmo — e expôs sua decrepitude em praça pública.
Muitos políticos, talvez a maioria, têm excelentes motivos para tentar salvar o ex-presidente do PSDB, mas, a seis meses da eleição, ninguém o fará. Infinitamente mais digno e inteligente do que o neto, Tancredo dizia que político acompanha o féretro até a beira da sepultura, mas não entra na cova com o defunto.
Aécio está morto e só. E não deixa saudades.
A reação à aceitação da denúncia é emblemática. Ninguém reclamou de falta de provas, nem que eleição sem Aécio é fraude. Ninguém vandalizou casa de ministro do Supremo, nem acampou em frente à casa do réu, nem organizou coro de bom dia. Ninguém incluiu “Aécio” em seu nome, nem afirmou que ele é guerreiro do povo brasileiro. Ninguém acha que Aécio é uma ideia.
Os eleitores de Aécio, cientes de que foram traídos, não lhe dedicam amor, mas desprezo, e a esmagadora maioria comemora que mais um criminoso será punido. Uma minoria, cujos gritos de “e o Aécio?” cessaram, está atônita, e de luto, pois a morte de Aécio inviabiliza a narrativa do “golpe”.
A cada passo, torna-se mais desconfortável defender Lula. Ignora-se a “direita” na cadeia. Descarta-se um oceano de provas. Defende-se o fim da Ficha Limpa. Não se enxerga que Lula foi dos últimos a ser presos, o único a ficar solto até a segunda instância. Não se percebe que o Supremo quase o libertou. Combate-se a prisão na segunda instância. Joga-se fora o ideal de igualdade, razão de ser da esquerda há 200 anos. Faz-se que não se vê Paulo Preto na cadeia, nem aonde isso vai dar. E eis Aécio réu.
A narrativa mais uma vez se adapta: Aécio é um boi de piranha, a denúncia serve para dar a impressão de que a lei é para todos, mas, na verdade, é só para inglês ver: ele jamais será condenado. A cada nova etapa, mais intrincada e espaventosa se torna a teoria da conspiração. Para calar a própria consciência, que brada “acorda para a realidade, companheiro, Lula é culpado!”, é preciso gritar “Lula livre” e xingar os outros de fascistas a cada minuto.
Mas uma hora a realidade se impõe. Quanto maior for o esforço para ignorá-la, maior será a ressaca.

sábado, 14 de abril de 2018

"Lula atrás das grades", por Mario Vargas Llosa

Graças à coragem de juízes e promotores está se perseguindo o grande inimigo latino: a corrupção
A entrada de Lula, ex-presidente do Brasil, em uma prisão de Curitiba para cumprir uma pena de doze anos de cadeia por corrupção deu origem a grandes protestos organizados pelo Partido dos Trabalhadores e homenagens de governos latino-americanos tão pouco democráticos como os da Venezuela e da Nicarágua, o que era previsível. Mas menos do que o fato de muita gente honesta, socialistas, social-democratas e até liberais considerarem que foi cometida uma injustiça contra um ex-mandatário que se preocupou muito em combater a pobreza e realizou a proeza de tirar, ao que parece, aproximadamente 30 milhões de brasileiros da miséria quando esteve no poder.
Os que pensam assim estão convencidos, pelo visto, de que ser um bom governante tem a ver somente com realizar políticas sociais avançadas e que isso o exonera de cumprir as leis e agir com probidade. Porque Lula não foi preso pelas boas coisas que fez durante seu governo, mas pelas ruins, e entre essas se encontra, por exemplo, a gigantesca corrupção na empresa estatal Petrobras e suas empreiteiras que custou à sofrida população brasileira nada menos do que dez bilhões de reais (desses, 7 bilhões em propinas).
Quem pensa tão bem de Lula, aliás, se esquece do feio papel de leva e traz que ele representou como emissário e cúmplice em várias operações da Odebrecht – no Peru, entre outros países – corrompendo com milhões de dólares presidentes e ministros para que favorecessem a transnacional com bilionários contratos de obras públicas.
É por essa razão e outros casos que Lula tem não só um, mas sete processos por corrupção em andamento e que dezenas de seus colaboradores mais próximos durante seu governo, como João Vaccari Neto e José Dirceu, seu chefe de Gabinete, tenham sido condenados a longas penas de prisão por roubos, esquemas ilícitos e outras operações criminosas. Entre as últimas acusações que pendem sobre sua cabeça está a de ter recebido da construtora OAS, em troca de contratos públicos, um apartamento de três andares em Guarujá.
Os protestos pela prisão de Lula não levam em consideração que, desde que ocorreu a grande mobilização popular contra a corrupção que ameaçava asfixiar todo o Brasil, e em grande parte graças à coragem dos juízes e promotores liderados por Sérgio Moro, juiz federal de Curitiba, centenas de políticos, empresários, funcionários e banqueiros foram presos ou estão sendo investigados e têm processos abertos. Mais de cento e oitenta já foram condenados e várias dezenas deles o serão em um futuro próximo.
Jamais algo parecido havia ocorrido na história da América Latina: um levante popular, apoiado por todos os setores sociais que, partindo de São Paulo, se estendeu depois por todo o país, não contra uma empresa, um político, mas contra a desonestidade, a enganação, os roubos, as propinas, toda a enorme corrupção que gangrenava as instituições, o comércio, a indústria, a atividade política, em todo o país. Um movimento popular cuja meta não era a revolução socialista e derrubar um governo, mas a regeneração da democracia, que as leis deixassem de ser coisa sem importância e fossem verdadeiramente aplicadas, a todos por igual, ricos e pobres, poderosos e pessoas comuns.
O extraordinário é que esse movimento plural encontrou juízes e promotores como Sérgio Moro, que, encorajados por essa mobilização, lhe deram uma via judicial, investigando, denunciando, enviando à prisão diversos executivos, comerciantes, industriais, políticos, autoridades, homens e mulheres de todas as condições, mostrando que é realizável, que qualquer país pode fazê-lo, que a decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo se existe a vontade e o apoio popular para isso. Cito sempre Sérgio Moro, mas seu caso não é único, nesses últimos anos vimos no Brasil como seu exemplo foi seguido por incontáveis juízes e promotores que se atreveram a enfrentar os supostos intocáveis, aplicando a lei e devolvendo pouco a pouco ao povo brasileiro uma confiança na legalidade e na liberdade que quase havia perdido.
O ex-presidente teve acesso a todos os direitos de defesa que existem em um país democrático
Há muitos brasileiros admiráveis; grandes escritores como Machado de Assis, Guimarães Rosa e minha querida amiga Nélida Piñon; políticos como Fernando Henrique Cardoso, que, durante sua presidência, salvou a economia brasileira da hecatombe e fez um modelo de governo democrático, sem jamais ser acusado de uma ação digna de punição; e atletas e esportistas cujos nomes correram o mundo. Mas, se eu precisasse escolher um deles como modelo exemplar ao restante do planeta, não hesitaria um segundo em eleger Sérgio Moro, esse modesto advogado natural do Paraná que, após se formar em advocacia, entrou na magistratura na oposição em 1996. Como já confessou, o que aconteceu na Itália nos anos noventa, a famosa Operação Mãos Limpas, lhe deu as ideias e o entusiasmo necessário para combater a corrupção em seu país, utilizando instrumentos parecidos aos dos juízes italianos da época, ou seja, a prisão preventiva, a delação premiada em troca da redução da pena e a colaboração da imprensa. Tentaram corrompê-lo, obviamente, e sem dúvida é um milagre que ainda esteja vivo, em um país onde os assassinatos políticos infelizmente não são uma exceção. Mas lá está, fazendo parte do que vem sendo uma verdadeira, apesar de ninguém ainda a ter nomeado assim, revolução silenciosa: o retorno da legalidade, o império da lei, em uma sociedade que a corrupção generalizada estava desintegrando e impedindo-o de passar de ser o “grande país do futuro” que sempre foi a ser o grande país do presente.
A decência e a honestidade são possíveis também no Terceiro Mundo
O grande inimigo do progresso latino-americano é a corrupção. Ela faz estragos nos governos de direita e esquerda e um enorme número de latino-americanos chegou a se convencer de que ela é inevitável, algo como os fenômenos naturais contra os quais não há defesa: os terremotos, as tempestades, os raios. Mas a verdade é que a defesa existe e justamente o Brasil está demonstrando que é possível combater a corrupção, se existirem juízes e promotores corajosos e responsáveis e, claro, uma opinião pública e imprensa que os apoiem.
Por isso é bom, para a América Latina, que homens como Marcelo Odebrecht e Lula tenham sido presos após ser processados, recebendo todos os direitos de defesa que existem em um país democrático. É muito importante mostrar em termos práticos que a Justiça é igual para todos, os pobres diabos do povo que são a imensa maioria, e os poderosos que estão no topo graças ao seu dinheiro e seus cargos. E são justamente esses últimos que têm maior obrigação moral de obedecer às leis e mostrar, em sua vida diária, que não é preciso transgredi-las para ocupar as posições de prestígio e poder que obtiveram, que elas são possíveis dentro da legalidade. É a única forma de uma sociedade acreditar nas instituições, repelir o apocalipse e as fantasias utópicas, sustentar a democracia e viver com a sensação de que as leis existem para protegê-la e humanizá-la cada dia mais.

quarta-feira, 11 de abril de 2018

"A Nova Saúva", por Cora Rónai


RI Rio de Janeiro (RJ) 22/06/2016 - Retrato da colunista Cora Ronai. Foto: Leo Martins / Agencia O Globo Foto: Leo Martins / Agência O GloboO antipetismo é o novo bicho papão dos intelectuais de esquerda. Ele acaba de ser comparado, por um amigo culto, inteligente e a quem respeito muito, ao antissemitismo na Alemanha de Hitler. Só posso atribuir a comparação ao calor do momento — vastas emoções, pensamentos imperfeitos. Mas acho que, em algum momento do futuro, serenados os ânimos, valeria à esquerda procurar, com honestidade, as origens desse suposto antipetismo, até porque é difícil encontrar a cura para um mal cuja causa se desconhece. Digo “suposto” não porque ele não exista, mas porque, da forma como vem sendo colocado, ele mais parece um movimento organizado, um conluio de vermes, o autêntico oposto de “democracia” — seja lá o que entenda por democracia alguém que defende o PT.



Ao contrário de tanta gente que denuncia o antipetismo, não tenho a menor pretensão de falar “pelo povo”, “pelos brasileiros”, “por todos nós”. Falo única e exclusivamente por mim, e já é responsabilidade que me baste. Eu detesto o PT. E detesto o PT pelo que o PT é, pelo que o PT fez e continua fazendo, e pela forma como o PT se comporta.

Não há um único fator externo ao PT embutido no meu sentimento.

É lógico que a sua intensidade tem a ver com o fato de que este é o partido que estava no poder até ontem: a crise que vivemos é, em maior ou menor grau, o resultado das suas escolhas e das suas ações. Tem a ver também com a hipocrisia do partido, que sempre se apresentou como alternativa ética aos demais, e foi incapaz de um simples pedido de desculpas à população quando se viu no centro do maior escândalo de corrupção já apurado no país.

E olhem que a corrupção do PT é, para mim, o menor dos seus males — ainda que ele a tenha elevado à categoria de arte. Meu maior problema com o PT, e com a esquerda como um todo, é a sua incapacidade de diálogo, a sua aversão ao contraditório e, sobretudo, a sua militância arrogante e patrulheira, que exige que todos se posicionem exatamente da mesma forma. Já estive em países de pensamento único e não gostei.

Há movimentos de direita igualmente obtusos e intolerantes, mas de modo geral eles se apresentam exatamente como são, toscos e primitivos. A sua embalagem é mais sincera; eles não pretendem ser “bons”, e nem falam do alto de um pedestal de virtudes.

Um dia, ainda naquela remota eleição que Lula disputou com Collor, eu estava na rua com o Millôr, e comentei com ele que, pelo visto, o Lula ia ganhar — todos os carros que passavam com adesivos eram PT. O Millôr olhou, olhou, e me disse para prestar mais atenção: a maioria dos carros simplesmente não tinha adesivos.

— Sabe o que isso significa, né?

Eu sabia. Usar um adesivo do Collor, pelo menos na Zona Sul do Rio de Janeiro, era se arriscar a ter o carro arranhado e enfrentar militantes petistas raivosos. Eu tinha passado por isso com o adesivo do Covas que havia usado no primeiro turno.

Collor ganhou a eleição sem adesivos, não exatamente com “votos envergonhados”, como o PT disse à época, mas com votos intimidados.

Lula, um militante intolerante ele também, nunca desceu do palanque. Passou todos os seus anos de presidência, e mais os da Dilma, como vítima de um complô das elites, insistindo na divisão do nós contra eles: ricos contra pobres, brancos de olhos azuis contra negros, todos contra nordestinos.

Lula, como todos sabem, é uma mulher negra da periferia; agora, ainda por cima, encarcerada.

Um candidato pode ser o que quiser, mas um presidente não. O presidente de todos os brasileiros não pode dizer que quem não votou no seu partido odeia pobres e tem horror de ver os filhos dos pobres na universidade, porque além de divisiva, essa afirmação é extremamente ofensiva.

Há uma esquerda bem intencionada que talvez não tenha percebido o quanto de ódio havia, e ainda há, nesse discurso, porque ele a põe no pedestal ao qual ela imagina ter direito e massageia o seu ego. Ele reafirma a sua superioridade moral e apenas põe os inferiores no seu devido lugar.

Mas para quem não votou no PT — e que não é necessariamente de direita, de extrema direita ou, como está na moda, “fascista” — cada declaração dessas soou como um insulto. Durante 13 anos, os 50 milhões de eleitores que não votaram em Lula ou Dilma, e que, em sua vasta maioria, são apenas brasileiros como os demais brasileiros, ouviram que eram péssimas pessoas. Qualquer política de estado era invariavelmente apresentada como um desafio à sua intrínseca maldade: apesar de vocês, que não votam no PT, os pobres vão ter saúde, vão estudar, vão ter moradia e dignidade.

Como se qualquer ser humano, por não petista que seja, pudesse ser contra isso.

Cinquenta milhões de eleitores foram sistematicamente agredidos e desumanizados pela retórica de Lula e pelo “ódio do bem” da esquerda; agora não suportam o PT.

Mas por que será, não é mesmo?

https://oglobo.globo.com/cultura/a-nova-sauva-22580828

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

"Parei de buscar explicações", por Lais Souza



Já se foram quatro anos desde o meu acidente em Salt Lake City, nos Estados Unidos. No começo, perguntei-me muito sobre o que aconteceu. Questionava Deus: por que não me deixou os movimentos de uma mão, ou de um dedo sequer? Fiquei me massacrando. Mas não adiantou, não encontrei a saída, era pior, uma perda de tempo. O começo foi bem complicado, porque saí de casa aos 10 anos para viver o sonho de atleta, e já não tinha tanta convivência com meus familiares. De repente volto para Ribeirão Preto, sem movimento nenhum, necessitando de tudo e precisando de uma adaptação para mim e para toda a família. Eu sempre fui muito independente, tinha minha casa, pagava minhas contas, tinha meus relacionamentos. E de repente eu me vi de fralda, com a minha mãe, como se tivesse voltado a ser criança.
Parei de buscar explicações, e muita coisa mudou em minha vida. Meu jeito de pensar, de ver as coisas, a relação com minha família. Hoje a pior coisa que poderia me acontecer seria perder meus pais. Mil vezes pior que o meu acidente. Minha mãe é uma guerreira, demonstra uma força que não sei se eu teria. Acho que estou bem mais sensível do que na época em que andava. Quando vejo uma criança passando fome ou problemas parecidos com o meu, isso me sensibiliza muito. Todos os dias me contam histórias nas redes sociais e percebo que às vezes meu problema nem é tão grande. Mas quase não choro, acho isso ruim. Cresci na seleção de ginástica com treinadores rigorosos, sofri muito para treinar, com a canela machucada, pé quebrado, tive de aprender a lidar com isso, adquiri um lado meio “cavalo”.
Ando mais séria também, em relação a tudo, à saúde, aos problemas. Acho que estou me sentindo velha, tenho quase 30 anos! Mas tem dias em que estou como antes, brincalhona. Às vezes estou forte, às vezes estou “franga”, depende, mais paciente, mas às vezes estouro, inevitavelmente. Não sou de ficar gritando muito ou tomar decisões loucas, a não ser que já estejam na minha cabeça há muito tempo. Às vezes acordo e acho que vou me mexer normalmente. Isso frustra… Quando converso, tenho a nítida sensação de que estou gesticulando. Pode ser que em algum momento eu me surpreenda e realmente me mexa. 
Preencho meu tempo com meu trabalho, faço palestras e eventos, minha principal fonte de renda. A fisioterapia constante me faz sentir atleta, porque eu sou atleta ainda. Canso do mesmo jeito, faço um esforço parecido, sinto dor muscular, aquela sensação de vitória quando consigo completar um exercício novo ou quando apresento sensibilidade em algum lugar. Depois do acidente, achei que não fosse mais me surpreender, sentir adrenalina, mas a vida me mostrou que isso ainda é possível. Tenho sensibilidade embaixo do pé, na barriga, nas costas e em alguns pontos da mão. O músculo do meu bíceps também vibra muito nos exercícios, isso é novo. Eu me sinto mais forte, mas vou devagar.
Consigo viver normalmente dentro das minhas limitações. Para ser sincera, o que mais sinto falta é de sexo. Sempre fui uma pessoa muito física, estava sempre em movimento, liberando adrenalina. Hoje não consigo fazer mais nada, é muito difícil. Aliás, minha sexualidade foi muito comentada, não chegou a me incomodar, porque a minha família, que realmente importa, já sabia. Nunca escondi nada da minha mãe. Logo contei para ela, expliquei o que eu estava sentindo e fomos nos adaptando. Quando saiu a notícia (de que tinha uma namorada), eu pensei: Caramba, quebrei o pescoço, estou quase morrendo, e as pessoas estão preocupadas se eu gosto de homem ou mulher, em pleno século XXI?
Agora moro em Ribeirão Preto, com minha mãe, num pequeno apartamento, e minha rotina começa depois das 9h30. Não gosto de acordar cedo, cuido da minha higiene, tomo banho, almoço, depois treino, vou à faculdade (de psicologia) e tento sair com minhas amigas, uma delas a Daiane dos Santos (também ginasta), com quem tenho muito contato. Nessa fase, quando vejo uma prova de ginástica, não sinto tristeza, mas saudade. Hoje olho para o acidente de uma forma mais serena - nunca voltei ao local, mas pretendo, seria legal ver neve de novo. E eu teria a chance de esquiar, sentadinha, num trenó adaptado. Espero que não tenha nenhum trauma.
Depoimento colhido por Silvio Nascimento e Luiz Castro 
Foto Felipe Cotrim/VEJA.com

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

Editorial do Globo: A maior derrota de Lula

Sentença do TRF-4 rivaliza com o fracasso do petista nas eleições de 89, 94 e 98


A confirmação da condenação de Lula em segunda instância, por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá, não encerra a carreira política do ex-presidente, porém é um revés de gigantesca magnitude. A unanimidade dos três votos, muito técnicos, dados pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), na aceitação do veredicto do juiz Sergio Moro, de Curitiba, da Lava-Jato, ainda permite pelo menos um recurso. Mas, por certamente retirá-lo das eleições de outubro, por meio da Lei da Ficha Limpa, e mantê-lo inelegível por oito anos — Lula só recupera os direitos políticos ao completar 81 anos —, a sentença é a maior derrota da vida do ex-presidente, rivalizando com o fracasso nas disputas pela Presidência da República com Fernando Collor (1989), em segundo turno, e as duas perdas, em primeiro, para FH (94 e 98).

A condenação de Porto Alegre é mais aguda por não ser política, mas se tratar de punição criminal por corrupção e lavagem de dinheiro, algo nunca antes ocorrido com um ex-presidente da República. Embora a militância bata bumbos para amplificar a tese sectária de que seu líder foi vítima de um tribunal de exceção — finge-se não saber o que é um verdadeiro tribunal de exceção —, a realidade é bem outra. Luiz Inácio Lula da Silva teve o direito de defesa respeitado, como tem acontecido nos demais processos na Lava-Jato. Mas o sectarismo rejeita qualquer argumento objetivo, e até formulou a tese autoritária de que o julgamento só seria legítimo se absolvesse Lula.

Também em Porto Alegre, a defesa do ex-presidente, feita pelo advogado Cristiano Zanin, manteve o tom da politização: todo o processo é repleto de erros, cheio de evidências de que não importam provas, com a intenção deliberada de condenar o grande líder popular, para retirá-lo das urnas de outubro. Ou seja, a defesa de Lula continua a ser feita para animar a militância, não com a finalidade de convencer juízes. Parece considerar inevitável a condenação final de Lula neste e em outros processos, e por isso trata de ajudar na construção da imagem de um mártir das causas populares, conveniente para quem não sabe fazer outra coisa na vida a não ser política.

Lula teve a condenação confirmada, por votos dos três desembargadores do TRF-4, cheios de argumentos objetivos e provas que desmontam posições da defesa — a partir das mais de 400 páginas do detalhado voto do relator João Pedro Gebran Neto, o primeiro a sancionar o veredicto de Sergio Moro. Houve até acréscimo da pena de Lula, por Gebran, de nove anos e meio para 12 anos e um mês de prisão, sob o correto argumento de que o cargo de Lula é um agravante. Proposta aceita pelos dois outros juízes.

No relatório, são citados os entendimentos entre o presidente da OAS, Léo Pinheiro, Lula e Marisa Letícia, diretamente ou por meio de representantes do PT, como João Vaccari Neto, também ainda preso, em torno do imóvel do Guarujá. Da mesma forma que aconteceu nas transações de corrupção com a Odebrecht, o trânsito do dinheiro sujo era acompanhado por uma conta corrente, na qual, no caso da OAS, o custo do tríplex e das obras de melhorias no imóvel foi debitado de propinas geradas em negócios da empreiteira com a Petrobras, de óbvio conhecimento de Lula e companheiros. O relator reservou um capítulo do voto para descrever como, por exemplo, Paulo Roberto Costa, “Paulinho”, foi colocado na diretoria da Petrobras por interferência direta de Lula, para atuar, com outros, no esquema de geração de propinas em contratos com empreiteiras amigas.

À medida que este processo tramitava — há outros, como o do sítio de Atibaia —, era fermentada na militância, também fora do país, a falsa constatação, alardeada pelo próprio Lula, de que ele era processado sem provas. Balela. Se forem analisados os autos sem as lentes do viés político e ideológico, encontra-se o passo a passo de como um singelo apartamento na orla do Guarujá, construído e comercializado por meio de uma cooperativa de bancários (Bancoop), foi adquirido em nome de Marisa Letícia, mulher de Lula, e, depois, com o marido no poder, terminou metamorfoseado no tríplex do prédio.

As provas podem ser consultadas. Mas a militância não se interessa por elas, prefere manter a fé no líder carismático. Existe documento rasurado que atesta a tentativa de encobrir o upgrade do imóvel, de um apartamento simples para um tríplex. Também há registros de imagens de Lula em visita ao novo imóvel, na companhia do presidente da empreiteira OAS, Léo Pinheiro, ainda preso, que se incumbiu de concluir o prédio depois que a Bancoop quebrou e não finalizou a obra. Por que tanta benemerência a Lula? Votos dos três desembargadores de Porto Alegre explicam em detalhes. Além de Gebran, Leandro Paulsen, revisor do relatório de João Pedro Gebran, e Victor Laus.

Em 2010, O GLOBO noticiou que a família Lula da Silva tinha um imóvel no prédio, fato confirmado pela Presidência. Houve visitas da família ao tríplex do prédio Solaris, ex-Mar Cantábrico, na época da Bancoop. Obras foram contratadas para atender ao desejo dos futuros moradores, mesmo que, formalmente, o imóvel continuasse, na escritura, sendo da OAS. Por quê? O próprio Léo Pinheiro depôs que a dissimulação foi pedida em nome de Lula. Três andares requeriam um elevador interno, e assim foi feito. O imóvel também recebeu uma nova e moderna cozinha.

Outros calvários jurídicos aguardam Lula. Um deles, o sítio de Atibaia, também próximo à cidade de São Paulo, mas no interior. Talvez uma herança do tempo de militância sindical na juventude, Lula não gosta de aparecer em escrituras de imóveis que usufrui. Caso deste sítio, em que costumava passar fins de semana e que terminou preparado por empreiteiras — Odebrecht e OAS —, para abrigar o ex-presidente nos momentos de lazer. Piscina, adega etc. Este é outro processo, mas há uma conexão dele com o do tríplex que condenou o ex-presidente em segunda instância: as cozinhas dos dois imóveis foram compradas pela OAS no mesmo fornecedor. Não faltam mesmo provas.

Do julgamento no TRF-4, fica a frase do procurador Maurício Gotardo Gerum, representante, no julgamento, do Ministério Público Federal:

— Lamentavelmente, Lula se corrompeu.


https://oglobo.globo.com/opiniao/editorial-maior-derrota-de-lula-22325712 
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