Cilene Pereira
fotos André Lessa
02/07/2016
A sessão de fisioterapia começou por volta das 13 horas de uma tarde gelada em São Paulo. Lais Souza estava encapotada. Calçava bota revestida de pele, calça grossa e por cima da blusa de manga comprida tinha um blusão acolchoado. Na cabeça, uma touca de lã cinza. “De mano”, disse com um sorriso de canto de boca, desses que fazem as pessoas parecerem mais novas do que são. Lais tem 27 anos, mas nesses momentos qualquer um pode dar a ela 15, no máximo 16 anos. O sorriso brincalhão aparece quando o gorro de mano cai e encobre a testa e os olhos, e Lais não pode fazer nada a não ser balançar a cabeça sem parar até que alguém a seu lado perceba. A ex-atleta Lais é assim. Miúda, delicada, doce, bem humorada. É desse jeito, com uma leveza encantadora, que ela está fazendo história. Já tinha feito no esporte, por ter ganhado uma coleção de títulos e participado de duas Olimpíadas (Atenas, em 2004, e Pequim, em 2008) como integrante da equipe brasileira de ginástica artística. Agora, Lais faz história na medicina.
Desde o dia 27 de janeiro de 2014, Lais não pode mais se movimentar do pescoço para baixo. Naquele dia, ela esquiava em Salt Lake City, nos Estados Unidos, em mais um treino de preparação para a Olimpíada de Inverno que aconteceu naquele ano em Sochi, na Rússia. Ela concorreria com a equipe brasileira de esqui aéreo, esporte de altíssimo desempenho e de uma beleza plástica admirável proporcionada pelas manobras em pleno ar executadas pelos atletas. Um choque contra uma árvore enquanto descia a montanha causou um deslocamento na terceira vértebra (C3) e quarta vértebra (C4) da coluna cervical. A lesão impedia a passagem de qualquer sinal nervoso do cérebro para o resto do corpo, e vice-versa. A estrada por meio da qual eram transmitidas e recebidas as informações que abasteciam o cérebro de Lais tinha sido bloqueada. Por isso, a ex-atleta perdeu a capacidade de andar, mexer os braços e sentir coisas como um toque na pele ou saber quando a bexiga está cheia.
A tragédia de Lais poderia ter ficado circunscrita à lista de fatalidades que acometem atletas que praticam esportes de alto risco. Mas a combinação da força da ex-ginasta com o empenho, conhecimento e carinho da equipe médica que a atendeu transformou o drama da brasileira de Ribeirão Preto em uma história extraordinária. Desde o início, soube-se que a situação era grave. Tanto que, dois dias após o acidente, Lais foi submetida a uma traqueostomia (introdução de um tubo na traqueia para permitir a respiração) e a uma gastrostomia (colocação de uma sonda alimentar diretamente no estômago). Em geral, esses procedimentos são feitos mais tardiamente e não logo depois dos acidentes. Neste período, avalia-se se serão mesmo necessários ou se o quadro pode ser revertido. No caso de Lais, eram escassas a chance de isso acontecer.
No acidente de 2014, Lais sofreu lesões nas vértebras C3 e C4, o que impedia a passagem de qualquer sinal nervoso a partir daquele ponto
Ela havia sido internada no Hospital Universitário de Utah. Em Miami, o médico brasileiro Antonio Marttos Júnior foi informado do caso. Especialista em trauma, ele a conhecia desde a Olimpíada de Londres, em 2012. Pouco antes do início dos Jogos, ela sofreu uma fratura na mão e foi atendida por ele. Depois de uma videoconferência com outros médicos e de analisar os exames de imagem da ex-atleta, Marttos decidiu pedir ajuda ao médico Barth Green, do Miami Project. A instituição é um dos principais centros de tratamento e pesquisa da paralisia, junto com a Universidade da Califórnia, também nos Estados Unidos, e algumas outras poucas instituições mundo afora. Lais foi transferida para o Jackson Memorial Hospital, em Miami, onde passou a ser atendida.
Desde o início, a ideia era investir pouco a pouco na reabilitação da ex-ginasta. “Lais não tem pela frente uma corrida de 100 metros rasos”, compara Marttos Júnior. “Tem uma maratona.” Pequenos progressos, como respirar sozinha e conseguir engolir, foram festejados. O primeiro passeio fora do quarto, de cadeira de rodas nos jardins do hospital, também. Com as respostas positivas e a disposição de Lais para encarar o que viesse pela frente, a equipe médica decidiu dar um passo maior: testar a eficácia das células-tronco em lesões como a da ex-atleta.
Células-tronco são células que ainda não se especializaram. Não são células ósseas, sanguíneas ou neurônios, por exemplo. São como matrizes prontas para se transformar nas células do lugar onde estão ou onde forem colocadas. A ideia é que, infundidas no cérebro, possam virar neurônios ou enriquecer a rede de vasos sanguíneos. Induzidas a virarem cartilagem, podem ser usadas em áreas danificadas dos joelhos. Por essa capacidade, elas têm sido alvo de intensos investimentos da ciência nos últimos dez anos. O sonho é utilizá-las como espécies de peça de reposição para substituir as que foram quebradas.
Há bons resultados em seres humanos na recuperação do músculo cardíaco afetado pelo infarto. No tratamento da tetra ou paraplegia há muito ainda sendo estudado. O objetivo é melhorar as condições de funcionamento das áreas lesadas, fazendo com que elas auxiliem na regeneração de partes dos feixes nervosos e ajudem na recuperação de áreas danificadas.
Lais enfrenta as cansativas e, por vezes, dolorosas sessões de fisioterapia com otimismo. A bagagem adquirida como atleta é decisiva do ponto de vista físico e mental
Lais pouco sabia a respeito desse mundo novo da medicina. Quando descobriu a intenção da equipe que a atendia, perguntou tudo o que queria saber e, mais uma vez, confiou plenamente nos especialistas. “Esses médicos são todos doidos”, diz, dando risada. Com a ajuda do consulado brasileiro em Miami, do médico Marttos Júnior e de todo o pessoal do Miami Project, Lais tornou-se a primeira pessoa nos Estados Unidos a conseguir uma autorização do Food And Drug Administration (FDA) – agência americana responsável pela liberação de drogas e tratamentos – para usar célula-tronco em tratamentos de lesão medular.
Há várias fontes de células-tronco no corpo. Em dentes de leite ou no sangue menstrual, por exemplo. Também podem ser extraídas de embriões Estas últimas podem se transformar em ainda mais tecidos do que as retiradas de adultos, mas sua utilização esbarra na questão ética de usar embriões. Nos protocolos de estudo, o mais comum é tirar as células-tronco presentes na medula óssea (o órgão que produz as células sanguíneas). A extração costuma ser feita da medula óssea presente no osso da bacia.
Lais passou por esse processo. Depois de retiradas, suas células foram replicadas em grande número em laboratório e reinjetadas no local da lesão. O procedimento foi repetido três vezes, com intervalo de um mês entre cada um.“Após as injeções, ela dizia que sentia formigamento no corpo todo”, diz Marttos Junior
Hoje, passados pouco mais de dois anos do acidente, Lais apresenta progressos surpreendentes. “É uma melhora atípica para quem sofreu uma lesão como a dela”, afirma o médico. Antes, ela sentia pontos de sensibilidade abaixo do pescoço. Agora, são áreas inteiras que se tornaram sensíveis. “Não sei ainda dizer se é a mão de alguém tocando minha barriga ou água caindo, mas sinto”, conta ela. A ex-ginasta também já consegue perceber quando a bexiga está cheia ou se está em posição desconfortável. E é difícil não se emocionar ao vê-la girando o corpo usando a força dos ombros.
Não se sabe dizer o quanto da melhora se deve às células-tronco. O mais provável é que ela seja resultado de uma associação muito feliz de fatores. “Grande parte de seus progressos se deve a sua excelente forma física antes do acidente, sua determinação e disposição firme no trabalho de reabilitação”, diz o médico James Guest, do Miami Project, que acompanha Lais desde o começo. “Ela se dedica a sua recuperação como se estivesse treinando para mais uma Olimpíada.”
Os dias da ex-ginasta são de muito trabalho. Ela faz sessões praticamente diárias de fisioterapia com duração mínima de duas horas. Em São Paulo, o tratamento é feito no Acreditando, um centro especializado em reabilitação de pessoas com lesões medulares ou neurológicas criado por um casal de cadeirantes. Vê-la se esforçando para executar os movimentos pedidos pelos profissionais – quatro se revezam no atendimento a Lais – é ganhar uma lição de determinação. Gestos simples para a maioria das pessoas, como empurrar a mão de outra pessoa, exigem dela uma aplicação e concentração impressionantes. O esforço é visto nas caretas que faz durante a execução dos movimentos, e a recompensa vem com um semblante de alívio e de alegria por ter cumprido a tarefa pedida. “Todo dia faço um pouquinho mais”, conta.
Na clínica, todos torcem por todos e os progressos são muito comemorados. “No caso da Lais, os principais ganhos são o aumento da atividade nos braços, começando com sinais nos bíceps e tríceps”, diz a fisioterapeuta Natália Padula, uma das que a atende. Esse tipo de melhora ajuda a ex-ginasta a rolar, por exemplo. Já o fortalecimento do abdome permite que ela tenha uma postura mais correta quando está sentada e também que fique de pé, com auxílio dos equipamentos. Quando chegou à clínica, há um ano, ela ficava ereta por no máximo cinco minutos. Hoje, chega a permanecer nessa posição por até meia hora.
A bagagem adquirida por Lais como atleta é decisiva na sua reabilitação. No aspecto físico, ela guarda uma consciência corporal que a auxilia na execução dos movimentos, sabendo com precisão a região, os músculos a serem acionados. Do ponto de vista comportamental, Lais mantém a disciplina e o treino de todo atleta para superar os tombos e pensar adiante. “Por mais momentos de fraqueza que tenha, ela consegue se concentrar e pensar no próximo passo”, diz Marttos Júnior
Nos planos da ex-atleta, são muitos os próximos passos. A começar pela programação para os Jogos do Rio. No dia 24 de julho, ela participará da passagem da tocha olímpica por São Paulo. Durante as competições, trabalhará como consultora de uma rede de tevê esportiva e, depois, estará presente na Paraolimpíada.
Mas Lais está preocupada. Teme que depois dos Jogos as atenções aos atletas se enfraqueçam, como sempre acontece. Atualmente, ela tem dado palestras e contado com a ajuda da família, amigos e empresas para custear seu tratamento. O piloto Helio Castro Neves, o jogador Neymar e o cavaleiro Doda Miranda estão entre os que contribuíram. A Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, também.
Para aprimorar seu desempenho nas palestras, ela planeja tomar aulas de canto – ajudará na empostação da voz e na respiração – e de oratória. Em um futuro um pouco mais distante, mas nem tanto, está o plano de estudar psicologia. E se depender dos amigos que fez no Miami Project, ela continuará a fazer história na medicina. “Lais é tão motivada e uma pessoa tão boa para se trabalhar que queremos oferecer a ela toda terapia que considerarmos úteis”, diz o americano James Guest. Nas palavras do cientista, isso inclui a implantação de chips que fazem a interface entre o cérebro e o resto do corpo, permitindo que a mente controle os movimentos. Lais continuará a sua maratona – e certamente chegará bem longe.
NA VANGUARDA DA MEDICINA
Lais foi a primeira pessoa a receber autorização do FDA – agência americana responsável pela aprovação de remédios e tratamentos – para se submeter a uma terapia com células-tronco para tratar lesões medulares. Confira o que foi feito até agora
_O acidente com a ex-ginasta aconteceu no dia 27 de janeiro de 2014, quando ela se preparava para competir nos Jogos Olímpicos de Inverno, em Sochi, na Rússia. Lais disputaria o esqui aéreo. Ao se chocar contra uma árvore, a atleta perdeu os movimentos e a sensibilidade do pescoço para baixo
_Desde o início do ano, Lais vem se submetendo a terapia com células-tronco. Elas são capazes de se transformar em vários tecidos do corpo. Por isso, a ideia é que elas ajudem na regeneração de partes dos feixes nervosos e ajudem na recuperação de áreas danificadas.
_Células-tronco foram extraídas da medula óssea de Lais contida no osso da bacia
_Foram replicadas em grande número em laboratório e reinjetadas no local da lesão
_Houve três aplicações, com intervalo de um mês entre cada uma
_Vários estímulos sensitivos e alguns motores começaram a chegar a regiões abaixo da lesão
_De completa, a lesão passou a ser considerada incompleta. Ou seja, há passagem de sinais nervosos para baixo da área lesada e chegando à região sacral
_Lais já sente, por exemplo, quando sua posição está desconfortável ou a bexiga está cheia. Também consegue se virar
_São grandes progressos, considerando a gravidade da lesão que a vitimou
http://www.istoe2016.com.br/a-maior-vitoria-de-lais/
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