Os quase 60 milhões de eleitores que votaram no
capitão só queriam se livrar do ladrão
JOSÉ NÊUMANNE, O Estado de S.Paulo
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Outubro 2018 | 03h00
Nêumanne |
Desde 2013 que o demos (povo,
em grego) bate à porta da kratia (governo),
tentando fazer valer o preceito constitucional segundo o qual “todo poder emana
do povo” (artigo 1.º, parágrafo único), mas só dá com madeira na cara. Então,
em manifestações gigantescas na rua, a classe média exigiu ser ouvida e o poste
de Lula, de plantão no palácio, fez de conta que a atendia com falsos “pactos”
com que ganhou tempo. No ano seguinte, na eleição, ao custo de R$ 800 milhões (apud Palocci),
grande parte dessa dinheirama em propinas, ela recorreu a um marketing rasteiro
para manter a força.
Na
dicotomia da época, o PSDB, que tivera dois mandatos, viu o PT chegar ao
quarto, mas numa eleição que foi apertada, em que o derrotado obtivera 50
milhões de votos. Seu líder, então incontestado, Aécio Neves, não repetiu o
vexame dos correligionários derrotados antes – Serra, Alckmin e novamente Serra
– e voltou ao Senado como alternativa confiável aos desgovernos petistas. Mas
jogou-a literalmente no lixo, dedicando-se à vadiagem no cumprimento do que lhe
restava do mandato. O neto do fundador da Nova República, Tancredo Neves,
deixou de ser a esperança de opção viável aos desmandos do PT de Lula e passou
a figurar na galeria do opróbrio ao ser pilhado numa delação premiada de corruptores,
acusado de se vender para fazer o papel de oposição de fancaria. O impeachment
interrompeu a desatinada gestão de Dilma, substituída pelo vice escolhido pelo
demiurgo de Garanhuns, Temer, do MDB, que assumiu e impediu o salto no abismo,
ficando, porém, atolado na própria lama.
Foi aí que o demos resolveu
exercer a kratia e, donas do poder, as organizações partidárias
apelaram para a força que tinham. Garantidas pelo veto à candidatura avulsa,
substituídas as propinas privadas pelo suado dinheiro público contado em
bilhões do fundo eleitoral, no controle do horário político obrigatório e
impunes por mercê do Judiciário de compadritos,
elas obstruíram o acesso do povo ao palácio.
Em
janeiro, de volta pra casa outra vez, o cidadão sem mandato sonhou com o “não
reeleja ninguém” para entrar nos aposentos de rei pelas urnas. Chefões
partidários embolsaram bilhões, apostaram no velho voto de cabresto do
neocoronelismo e pactuaram pela impunidade geral para se blindarem. Mas,
ocupados em só enxergar seus umbigos, deixaram que o PSL, partido de um
deputado só, registrasse a candidatura do capitão Jair Bolsonaro para conduzir
a massa contra a autossuficiência de Lula, ladrão conforme processo julgado em
segunda instância com pena de 12 anos e 1 mês a cumprir. O oficial, esfaqueado
e expulso da campanha, teve 10 milhões de votos a mais do que o preboste do
preso.
Na
cela “de estado-maior” da Polícia Federal em Curitiba, limitado à visão da
própria cara hirsuta, este exerceu o culto à personalidade com requintes sadomasoquistas
e desprezo pela sorte e dignidade de seus devotos fiéis. Desafiou a Lei da
Ficha Limpa, iniciativa popular que ele sancionara, transformou um ex-prefeito
da maior cidade do País em capacho, porta-voz, pau-mandado, preposto, poste e,
por fim, portador da própria identidade, codinome, como Estela foi de Dilma na
guerra suja contra a ditadura. Essa empáfia escravizou a esquerda Rouanet ao
absurdo de insultar 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros que haviam decidido
livrar-se dele de nazistas, súditos do Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães, que não se perca pelo nome, da Alemanha de Weimar: a
ignorância apregoada pela arrogância.
Com
R$ 1,2 milhão, 800 vezes menos do que Palocci disse que Dilma gastara há quatro
anos, oito segundos da exposição obrigatória contra 6 minutos e 3 segundos de
Alckmin na TV, carregando as fezes na bolsa de colostomia e se ausentando dos
debates, Bolsonaro fez da megalomania de Lula sua força, em redes sociais em
que falou o que o povo exigia ouvir.
A
apoteose triunfal do “mito” que derrotou a “ideia” produziu efeitos colaterais.
Inspirou a renovação de 52% da Câmara; elegeu governadores nos três maiores
colégios eleitorais; anulou a rasura na Constituição com que Lewandowski,
Calheiros e Kátia permitiram a Dilma disputar e perder a eleição; e forçou o
intervalo na carreira longeva de coveiros da república podre.
O nostálgico da ditadura, que votou na Vila
Militar, tem missões espinhosas a cumprir: debelar a violência, coibir o furto
em repartições públicas e estatais, estancar a sangria do erário em privilégios
da casta de políticos e marajás e seguir os exemplos impressos nos livros
postos na mesa para figurarem no primeiro pronunciamento público após a
vitória, por live. Ali repousavam a Constituição e um livro de
Churchill, o maior estadista do século 20.
Não lhe será fácil cumprir as promessas de
reformas, liberdade e democracia, citadas na manchete do Estado anteontem.
Vai enfrentar a oposição irresponsável, impatriótica e egocêntrica do
presidiário mais famoso do Brasil, que perdurará até cem anos depois de sua
morte. E não poderá fazê-lo com truculência nem terá boa inspiração nos
ditadores que ornam a parede do gabinete que ocupou. Sobre Jânio e Collor, dois
antecessores que prometeram à cidadania varrer a corrupção e acabar com os
marajás, tem a vantagem de aprender com os erros que levaram o primeiro à
renúncia e o outro ao impeachment.
Talvez o ajude recorrer a boas cabeças da economia
que trabalharam para candidatos rivais, como os autores do Plano Real e a
equipe do governo Temer, para travarem o bom combate ocupando o “posto
Ipiranga” sob a batuta de Paulo Guedes. Poderá ainda atender à cidadania se
nomear bons ministros para o Supremo Tribunal Federal e levar o Congresso a
promover uma reforma política que ponha fim a Fundo Partidário, horário
obrigatório e outros entulhos da ditadura dos partidos, de que o povo também
quer se livrar em favor da desejável igualdade.