De todo o lado estouraram memes
zombando da atriz e ridicularizando suas alegações de violência doméstica
31.mai.2022
às 15h41
Foi por puro acaso que assisti ao início do julgamento entre Johnny Depp e Amber Heard. Cliquei no link da newsletter por pura curiosidade, querendo colar uma imagem àquelas palavras —afinal, não via o rosto de Depp há anos e nunca tinha ouvido falar de Heard. Mal sabia que estava dando início a um verdadeiro espetáculo seriado do qual seria impossível escapar.
Como em qualquer produto audiovisual que se preze,
o segredo é criar um personagem forte logo nos primeiros instantes, e disso se
encarregou o testemunho inicial de Depp. Num tom entre o etéreo e o
idiossincrático, era difícil desgrudar os olhos da imagem hipnotizante do
galã, com sua estranheza e o inegável carisma que lhe rendeu
carreira milionária em Hollywood.
Seu depoimento destoava do que costumamos ver em filmes
e seriados sobre tribunais —não havia perguntas ou objeções, o que se tinha ali
era um monólogo auto-centrado e interminável do ator. Depp falava como que para
si mesmo, provavelmente sabendo que a câmera da sala de julgamento se
encarregaria de transformar uma fala para ninguém num discurso para milhares.
Ouvindo seus relatos, em especial sobre sua
infância, fui tomada por uma empatia triste por aquele personagem. Que
milionário infeliz, pensei, não há dinheiro nem sucesso no mundo que vá dar a
ele o amor que nunca teve dos pais.
À medida em que o julgamento avançou, com alegações e detalhes sórdidos nas semanas seguintes,
continuei sentindo tristeza por aqueles personagens milionários e miseráveis.
Mas a esse sentimento se juntou um outro: fui tomada por raiva.
De todo o lado estouravam memes zombando de Heard e
ridicularizando suas alegações de violência doméstica. As fotos não revelariam
um olho roxo suficientemente claro para provar a violência física do marido,
seu nariz não estaria lá tão inchado, a lesão no coro cabeludo não bastaria
para provar que o tufo de cabelo no chão era mesmo de Heard e não extensões
capilares.
As testemunhas em favor das alegações de Heard
sobre o desequilíbrio do companheiro, que incluiam desde ex-amigos, sua maquiadora e até a ex-agente de Depp,
teriam sido compradas. Quem assistiu esses testemunhos concordaria comigo que
pessoas contratadas teriam dado depoimentos mais coesos.
O mais assustador é
que para tomar o lado de Depp, seria necessário ir além das testemunhas e
ignorar a performance do próprio Depp na sala de julgamento. Um homem que, sob
o escrutínio da transmissão ao vivo, se permitiu ouvir depoimentos macabros
fazendo desenhos e dando risadinhas, e respondeu com deboche e ironia aos
questionamentos dos De fato, nem é preciso imaginar. Num vídeo exibido no
julgamento, Heard chega na cozinha de manhã e encontra Depp fora de si,
claramente alterado por alguma droga, bebendo vinho como se fosse água,
discorrendo impetuosamente sobre coisas sem sentido e destruindo os armários ao
seu redor. A índole violenta e imprevisível do ator fica evidente, e me deu
calafrios.
O que assusta mais do que a resistência
generalizada em reconhecer manchas no galã simpático que estampou as paredes de
seus quartos adolescentes vinte anos atrás, é o fato de a opinião pública
ter colocado Depp e Heard em pé de igualdade.
Tornaram-se comuns declarações nas seguintes
linhas, por pessoas que não acompanharam o julgamento: "Duas estrelas de Hollywood estiveram casadas durante
apenas alguns meses, durante os quais consumiram drogas, destruíram casas e se
agrediram mutuamente".
Ora, Heard era uma atriz desconhecida quando se
casou com o multimilionário e célebre Depp –ela com 24, ele com 47. Nunca houve
igualdade entre os dois. O americano é dono de um fortuna imensurável, tem uma
ilha privada nas Bahamas, uma vila na França, um castelo na Inglaterra, além de
inúmeras coberturas em Los Angeles e uma rua inteira de casas na cidade. As
estimativas mais ousadas colocam a fortuna de Heard, depois do divórcio que lhe
rendeu US$ 7 milhões, em US$ 12 milhões, o que não significa nem 5% da de Depp.
Depp tem a seu dispor uma verdadeira máquina de
assistentes, publicistas, além de seus fanáticos fãs que conduzem campanha de ridicularização de Heard nas mídias sociais.
Não há nem mesmo igualdade física entre os dois —Depp é um homem bastante
encorpado de 1,78, enquanto Heard uma mulher mirrada que pesava cerca de 50kg
quando entrou com o pedido de divórcio e ordem de restrição para evitar contato
do marido.
A desigualdade era constante no próprio julgamento. Se Depp
podia dar seus longos depoimentos e respostas cínicas, com Heard era o oposto.
Bastava uma continuação além da resposta para que a advogada de Depp pedisse
para excluir dos registros o que a atriz havia dito. Pior, durante o questionamento
de Heard, a advogada de Depp não lhe deixava terminar uma frase —os protestos
constantes quebravam sua linha de raciocínio e protegiam Depp do que seria
revelado nas respostas. Enquanto Heard era silenciada e sua advogada afogada em
questões burocráticas legais, Depp ria com seus óculos escuros sentado em sua
cadeira na corte.
A quantidade de brigas e conflitos relatados por
ambas partes aponta para um relacionamento extremamente tóxico. E a
personalidade de Heard, que se via como uma "mulher durona", que se
orgulhava de não se vimitizar nem quando era claramente vítima de abuso, dá indicativos de
que deveria haver sim agressões mútuas. Mas o diferencial vem num depoimento
comovente de uma ex-amiga de Heard: "Ela não tinha muita
auto-preservação."
Um diálogo gravado entre Depp e Heard revela a
dinâmica do casal —a atriz é forçada a pedir desculpas por ter gritado com Depp
na frente do filho do ator depois de ele ter derrubado vinho em cima dela pela
terceira vez. Ora, um homem adulto se embebeda a ponto de desmaiar com um copo
de vinho na mão na frente de seu filho, e quem deve pedir desculpas por
assustar a criança é a madrasta que gritou?
Um colaborador de Depp revelou uma anedota que
passou desapercebida, mas contribui para a compreensão da mentalidade do ator.
Durante as gravações de suas cenas, ainda que esteja contracenando com outros
atores, Depp ouve música alta num ponto de som no ouvido. Convenhamos, uma
pessoa dessa não pode ser equilibrada.
Isto sem mencionar as mensagens trocadas por Depp
com amigos (como o ator Paul Bettany) e funcionários falando em desejos de
morte, violência sexual e "humilhação global" contra Heard.
Há inúmeros episódios protagonizados pelo
"monstro" –palavra que o próprio Depp usava para se descrever depois
de consumir álcool e drogas. Num deles, Depp perde a ponta do dedo num acidente mal explicado que ele
tenta creditar a Heard, que teria jogado uma garrafa em sua direção
numa briga. Nem médicos especialistas foram capazes de justificar que o corte
sofrido pelo ator era consistente com o que ele descreve. As testemunhas de
Depp, contudo, insistiam nunca terem visto Depp usando drogas, como seu técnico
de som contratado que, entre relatos deslumbrados sobre as viagens espontâneas
de jatinho que fazia à ilha de Depp, contou nunca ter visto Depp bêbado, pois a
bebida não tinha nenhum efeito nele.
"Há uma vítima de abuso doméstico nesse julgamento
e esse alguém não é a Sra. Heard", declarou uma das advogadas do ator.
Como acreditar nisso? Depp justificou seu desinteresse na sala de julgamento
com uma anedota —teria declarado à ex-mulher, por ocasião do divórcio pedido
por ela, "você nunca mais verá os meus olhos". Seriam essas palavras
de um homem que foi vítima de abuso ou antes de um predador que não aceita ter
perdido sua presa?
Depois de tudo que se passou entre os dois
–incluindo um processo contra o jornal britânico The Sun, no qual o
juiz declarou que as acusações de abuso de Heard eram "substancialmente
verdadeiras" –que conclusão tirar desse processo movido
por Depp? Uma ação de indenização contra Heard por causa de um artigo de jornal
no qual ela declara que teve um relacionamento abusivo –o que, ainda que metade
de suas alegações sejam falsas, ela de fato teve.
Não parece mais do que uma manobra desesperada de
uma estrela decadente, financeiramente quebrada, que perdeu o seu agente,
as franquias que lhe garantiam salários milionários e
claramente jogou a própria vida na lata do lixo.
Resta agora ver se o júri estava assistindo ao
mesmo julgamento que eu. Enquanto eles deliberam, o despreocupado Depp faz aparições surpresa em shows de Jeff Beck pelo
mundo. Nada mais interessa a Depp, protagonista inegável do
espetáculo "Depp x Heard", que deu a Heard o papel de vilã megera.
Já Heard segue sob ataque, motivo de chacota
mundial, vivendo o que havia declarado no fatídico artigo que deu origem a todo
esse circo: "Dois anos atrás, me tornei uma figura pública representando
abuso doméstico, e senti a força completa da ira da nossa cultura contra
mulheres que ousam denunciar abusos".