Soube recentemente, completamente sem querer, de um DVD lançado pela Biscoito Fino chamado "A Casa do Tom", dirigido pela viúva do maestro, Ana Lontra, com imagens preciosas de seu acervo particular e narração da própria Ana. É um belíssimo documento.
Segue abaixo o poema "Chapadão", constante do DVD, lido por Tom.
Saudade do amado Tom.
Chapadão
(Tom Jobim)
Vou fazer a minha casa
No alto do chapadão
Vou levar o meu piano
Que ficou no Canecão
Vou fazer a minha casa
No alto do Chapadão
Vou levar a don'Aninha
Prá me dar inspiração
Vou fazer a minha casa
No alto de uma quimera
Vou criar um mundo novo
Inventar nova megera
Vou fazer a minha casa
Com largura e comprimento
E peço ao Paulo uma sala
Pra botar Aninha dentro
Vou botar minha biruta
No taquaruçu de espinho
Vou fazer cama macia
Pra te amar devagarinho
Seremos dois belezudos
Neste mundo de feiosos
As noites serão tranquilas
E os dias tão radiosos
Quero minha casa feita
Com régua, prumo e esmero
Quero tudo bem traçado
Quero tudo como eu quero
Quero tudo bem medido
De largura e comprimento
Não quero que minha casa
Me traga aborrecimento
Vou fazer a minha casa
Do alto de uma canção
E agradecer a Deus Pai
A sobrante inspiração
Sob a axila do Cristo
Neste sovaco cristão
Vou fazer a minha casa
No alto do Chapadão
E vou dar festa bonita
Com bebida e com garçon
E ao Lufa que foi amigo
Dou champagne com bombom
Vou fazer a minha casa
No centro do ribeirão
Quero muita água limpa
Pra lavar meu coração
Minha casa não terá
Nem sábado nem domingo
Todo dia é dia santo
Todo dia é dia lindo
Todo dia é sexta-feira
Sexta-feira da paixão
Vou convidar Alberico
Para o peixe com pirão
E dentro da minha casa
Nunca vai juntar poeira
Pelo meio dela passa
Uma enorme cachoeira
Quero água com fartura
Quero todo o riachão
Quero que no meu banheiro
Passe inteiro o ribeirão
Quero a casa em lugar alto
Ventilado e soalheiro
Quero da minha varanda
Contemplar o mundo inteiro
Vou fazer o meu retiro
Na grota do chororão
A minha casa será
Uma casa de oração
Vou me esquecer do pecado
Entrar em meditação
E não saio mais de casa
Só saio de rabecão
Vou entrar pra Academia
Vou comer muito feijão
E com a ajuda de Maria
Vou vestir o meu fardão
Mas na minha Academia
Sem chazinho e sem garçom
Só entra Mário Quintana
Paulinho e Carlos Drummond
Que já chega de besteira
Já basta de decoreba
Que a cultura verdadeira
Tá na asa do jereba
Porque tem urubu-rei
E tem urubu-ministro
Dois de cabeça amarela
E um preto que registro
Registro neste debuxo
Os dois condores também
Embora urubus de luxo
Têm direitos no além
Sob a axila cristã
Neste sovaco cristão
Vou fazer de telha-vã
A casa do Chapadão
Vou dormir meu sono velho
Neste sovaco do Cristo
Vou comprar muito sossego
Vou regar o meu hibisco
Vou viver na minha casa
Vou viver com a minha gente
Vou viver vida comprida
Prá não morrer de repente
Vou contemplar grandes pedras
Vazio de compreensão
Vou esquecer o meu nome
No alto do Chapadão
Vou plantar um roseiral
Vou cheirar manjericão
Vou ser de novo menino
Vou comprar o meu caixão
E vou dormir dentro dele
Bem relax, tranqüilão
Dormir de banho tomado
Já pronto pra extrema-unção
Vou fazer a minha casa
No alto do cemitério
Vou vestir a beca negra
E exercer o magistério
Vou vestir a roupa lenta
Que leva ao desconhecido
E eis que chego aos sessenta
Como um homem sem partido
Nesta passagem de vento
Nesta eterna viração
Vou fazer a minha casa
Com as pedras do ribeirão
Vou fazer a minha toca
No bico d'urubutinga
No pico da marambaia
Lá na ponta da restinga
Será no rastro das anta
Na trilha da sapateira
Que é pras onça do telhado
Cair dentro da fogueira
Que eu gosto de onça assada
Mas na brasa da lareira
Conversando ao pé do fogo
A conversa rotineira
Das queixadas, dos macucos
Conversa pra noite inteira
Da memória das caçadas
Na floresta brasileira
Deste planalto central
Este projeto cristão
A ninguém faltará teto
A ninguém faltará pão
Desta prancheta ideal
Na luminosa manhã
Dr. Lúcio faz o risco
Do projeto telha-vã
Nesta oficina serena
Carpintaria cristã
Dr. Lúcio mais Oscar
No projeto telha-vã
Neste canteiro de obras
Onde manda mestre Adão
Os milhares de operários
Colocar as telhas vão
Neste desvão principal
Nesta branca e azul manhã
Vou erguer a minha casa
De vermelha telha-vã
Vou fazer a minha casa
No meio da confusão
Que o jereba se alevanta
No olho do furacão
Vou fazer a minha casa
Na asa d'urubu peba
Que casa só é segura
Feita em asa de jereba
Vai ser na vertente seca
Na virada da chapada
Onde o peba se suspende
Na fumaça da queimada
Não quero mais ter galinha
Vendo toda a capoeira
Vou mandar cortar o mato
E vender toda a madeira
Mas quem pôs fogo no mato ?
É espontânea a combustão ?
Esse fogo vem de longe
Isse fogo é de balão
Inda que mal lhe pergunte
Esse fósforo aí grandão
O compadre me desculpe
E só de acender balão ?
Vou botar fogo no mato
Comandar rebelião
Incendiar a floresta
Tacar fogo no sertão
E o urubu de queimada
Vai surgir na ocasião
Pra comer todas as cobras
Sapos, ratos, pois então !
Caracóis e lagartixas
e todos bichos do chão
Urubu, santo lixeiro
Tu é da Comlurb, então ?
Trabalhando o ano inteiro
Tem décimo terceiro não ?
Camiranga meu amigo
Obrigado meu irmão
Que limpa toda sujeira
Desse povo porcalhão
Q'inda por cima te xinga
De feioso e azarão
«Doação ilimitada
A uma eterna ingratidão»
E vou viver no deserto
Quero o ar puro do sertão
Não quero ninguém por perto
E nem que passe avião
Não pode ter venda perto
Nem estrada de caminhão
Não quero plantas nem bichos
Nem quero mulher mais, não
Quero vestir meu pijama
Smith e Wesson na mão
Quero ler na minha cama
Papo-amarelo no chão
As histórias do corisco
Vividas nesse sertão
Que Sérgio Ricardo e Glauber
Cantavam ao violão
«Eu não sou passarinho
Prá viver lá na prisão
Não me entrego ao tenente
Nem me entrego ao capitão
Eu só me entrego na morte
De parabelum na mão»
Minha casa é por aí
E no mundo, monde, mondo
Que eu só durmo no sereno
Quem faz casa é marimbondo
Vou cerzir a minha asa
Na casa do Sylvio então
Pra voar que nem jereba
Bem longe do Chapadão
Vou vender o meu pandeiro
Vou levar meu violão
Favor mandar meu piano
De volta pro Canecão
Vou-me embora vou-me embora
Aqui não fico mais, não
Adeus minha bela morena
Vou pegar meu avião
Adeus minha roxa morena
Minha índia tupiniquim
O meu amor por você
É eterno até o fim
Não quero partir chorando
Já tá tudo tão ruim
Não chore, meu bem, não chore
Não me deixes triste assim
Adeus minha moreninha
Não vá se esquecer de mim
Mas não vou ficar solteiro
Você pára de chorar
Que com a sobra do dinheiro
Mando logo te buscar
Avião papa jereba
Passa mal e cai no chão
Avião foge do peba
Peba derruba avião
Por favor seu urubu
Me deixe passar então
Não entre em minha turbina
Não derrube o avião
Eu já tô tão tristezinho
E tantos outros já estão
Não derrame meu uisquinho
Não abata o meu jatão
Vou-me embora desta terra
Meu desgosto não escondo
O afeto aqui se encerra
Quem faz casa é marimbondo
Vou-me embora vou-me embora
Você não me leve a mal
Se Deus quiser fevereiro
Venho ver o carnaval
E não quero mais ter casa
Precisa de casa, não
Quem tem casa é marimbondo
Minha casa é o avião
Telefonei pro aeroporto
Não tinha avião mais, não
Vou fazer minha viagem
Na asa do peba então
(Acho asa de jereba
Mais segura que avião)
maravilha
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